terça-feira, 7 de outubro de 2008

na academia - Eu já posso imaginar que faço.

Este livro circulou pelo país muito antes de ser editado, pelas casas e pelas vidas de algumas pessoas. Nasceu de uma extensa conversa radiofónica. Da Rádio Comercial chegou à letra da Assírio & Alvim. De que se trata? Da vida das pessoas. Propõe um sentido poético, a reflexão, “dar forma aos sonhos” contra a normalização e apatia que abafam a vida. O diálogo, as hesitações, os silêncios, as divergências pontuais, a coloquialidade tornam-no tão próximo como se se tratasse literalmente de um livro de bolso, perto do calor do corpo e do escuro dos sonhos. Formalmente é uma conversa interminável, sem mestre, chave d’ouro ou indiscutíveis verdades.

retirado daqui

Resolvi falar deste livro de algum modo por causa da escrita de Lobo Antunes, que se me afigura algo impenetrável. Já tinha dito na academia que tentei mais do que uma vêz ler obras dele e nunca consegui. No fim de semana peguei n' a morte de Carlos Gardel e não consegui passar da primeira página. Tenho pena, mas, como diria o Eng. Guterres: "É a vida..."

Entretanto comecei a pensar na escrita e na palavra dos psi's e lembrei-me deste título que li com enorme prazer há uns anos. Não será obra de grande alcance literário, até porque resulta da transcrição de um programa de rádio, mas seduz.
Deixo um pequeno excerto:

Todos nascemos com uma doença mortal que é a vida

C.A.D. – Claro. E lá diz o povo: mãe há só uma. Penso que foi o código napoleónico que tentou introduzir um pouco o pai, mas à força. Porque, de facto, é a mulher que tem sempre o segredo da maneira como gerou os seus filhos. Tenho um conhecimento, digamos, microscópico, de míriades de fantasma que se geram à volta da criança.
Acompanhei várias mulheres que estiveram grávidas durante a análise e pude aperceber-me que há sempre um mistério sobre a criança que nunca é partilhado com o pai. Os casais modernos pensam que isto de homens e de mulheres é tudo a mesma coisa e propõem a divisão das tarefas com o bebé em planos de igualdade, como se fosse indiferente para o bebé ser tratado por um ou pelo outro. O impulso maternal é comum a toda a espécie humana, mas a mulher não permite ao homem a comunhão da maternidade. Acaba sempre por lembrar que o filho andou foi na barriga dela. A mão outorga-se o privilégio de ser o paraíso perdido da criança…
J.S.M. – Voltamos, afinal, ao paraíso perdido, mas desta vez um paraíso bastante mais real que o da Bíblia, talvez o único paraíso perdido verdadeiro…
C.A.D. – E voltamos também à questão que me pôs no outro dia, sobre a importância dos mitos da origem. É que todos nascemos com uma doença mortal que é a vida. E aí também a religião católica dá uma bela resposta ao dizer: “da terra vieste, à terra voltarás”. Já falámos também do Édipo em Colono, onde aquele acaba por se dissolver num coito com a terra-mãe. Ora, é precisamente porque morremos que temos necessidade de uma origem. Seria terrível srmos mortais! Se o fôssemos, ninguém faria coisa alguma! Pelo menos os criadores, esses aspiram sempre à imortalidade. Penso que era o Herberto Hélder que dizia que o desejo mais mortal é o desejo da imortalidade. E eu estou de acordo com ele.

In, Eu já posso imaginar que faço, 1989


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